top of page

Necromancy Tales - Capítulo 6

A fogueira crepita nesta noite fria e silenciosa, na fogueira há uma mão humana queimada, que fora espetada por um galho que Runa deixou para assar, ela já havia comido bastante quando o fez, e acabou caindo no sono enquanto esperava a sua comida ficar pronta, o cheiro de carne queimando perturba minhas narinas.

 

Mas fora os sons do crepitar da fogueira e o ronco de Runa, que está estirada na grama dormindo, o que eu estou aguardando é o som da voz do Necronomicon, que atualmente está no meu colo, organizando os seus pensamentos para responder minha pergunta.

 

— Então, o que você quis dizer com “efeitos colaterais”?

 

A boca e olhos entalhados na capa de couro do livro começam a se mover conforme ele fala.

— Como você deve ter reparado, eu sou um livro amaldiçoado.

 

É, a tinta vermelha como sangue e as páginas de pele humana acabam entregando, sem mencionar a capa.

 

— E esta parte amaldiçoada, exige que eu me alimente, mas a maldição não é exatamente algo que eu possa controlar… Então, quando eu estou com fome, a maldição começa a afetar os sentidos da pessoa mais próxima a mim com as alucinações, a fim de manipulá-la a me alimentar.

 

— Então as alucinações são causadas pela maldição que está me induzindo a alimentar você? - Eu pergunto. — Mas por que eu não sou… erm… drenada, quando eu o seguro? É o ritual?

 

— Sim, o ritual me concedeu um dos seus olhos que são considerados os símbolos que refletem a alma de alguém, assim, nossas almas estão conectadas, e você não será afetada de forma letal pela minha maldição.

 

— E qualquer pessoa ou criatura que encostar em você irá instantaneamente morrer drenada?

 

Pois se isso for verdade, então mesmo sem saber utilizar magia alguma, o Necronomicon em si é uma arma poderosa, mais poderosa do que as espadas mágicas que qualquer ferreiro poderia forjar.

 

— Não é bem assim… - Ele diz, provavelmente ouvindo meus pensamentos. — Minha maldição não irá matar qualquer um instantaneamente, se a criatura possuir qualquer forma de poder ou resistência mágica, a maldição não irá ser capaz de drenar o sangue dela, e sim causar alucinações como as que você viu, com o propósito de matar outra criatura ou a si mesma.

 

Mesmo não matando qualquer um imediatamente, isso ainda pode ser bastante vantajoso para mim.

 

— Nem tanto, há deméritos para você se tentar me utilizar deste jeito, mas não irei lhe contar agora, você precisa dormir, eu sinto que amanhã já estaremos no Anel das Fadas que circula a academia, e você precisa descansar para passarmos por lá.

 

— Do que você está falando? Eu me sinto be-

 

Minha visão fica turva, toda a tensão que havia se acumulado em mim ao longo do dia se esvai, desde quando eu acordei desesperada com o ataque dos orcs, me cortando para fazer uma invocação falha, lidar com a Runa, ver pessoas sendo comidas e mutiladas pelos orcs… Tudo acaba indo embora. Aparentemente minha mente estava se mantendo acordada até eu receber uma resposta sobre os efeitos colaterais do Necronomicon, e agora que eu a recebi, meu corpo relaxou.

 

E consigo me lembrar, da satisfação que senti… De matar aquele homem com o rosto do meu pai, de me livrar dos meus problemas ao fazer todos se calarem.

 

Eu me levanto, deixando o Necronomicon cair do meu colo, ficando pendurado em minha cintura, e me deito no chão próxima a fogueira.

Provavelmente irei dormir melhor do que o normal esta noite.

 

E ela pensa isto, enquanto aconchega a cabeça dela em um tufo de grama, enquanto o cheiro de carne queimada que a pequena orc esqueceu na fogueira permeia no ar.

 

Não sei se fico feliz por ter uma portadora com baixos valores morais, ou triste por ela ser um tanto excêntrica.

 

..

.

 

— Ah, não!

 

Eu acordo com o grito de Runa, sentindo alguma coisa caminhando na minha testa, uma formiga, pelo o que parece.

 

Me levanto, retirando a formiga do meu rosto, e vejo Runa ajoelhada no chão, com algumas lágrimas em seu rosto.

 

— Meu lanche! Nããão!!

 

Vamos ignorá-la por enquanto….

 

Eu termino de me ajeitar e olho ao redor, a floresta parece bem diferente durante o dia, é uma vista bonita, a luz do Sol descendo em vários feixes de luz entre as folhas da copa das árvores, o chão com várias folhas secas e grama esparsa, sendo complementados pelo canto dos pássaros e o cheiro de cinzas queimadas da fogueira.

 

— Aaaaahhh!!

E claro, os gritos de Runa. Espero que não haja lobos por aqui, senão nós seremos alvos fáceis para eles.

 

Eu bato nas roupas para tirar a poeira, e Runa rapidamente se dirige a mim, segurando a minha mão com suas duas mãos.

 

— Selviaaaa! Só um dedo! Pode ser o mindinho! Por favor! - Ela diz, aos prantos.

 

Eu ergo uma única sobrancelha tentando entender o que ela quer com o meu mindinho.

— Do que você está falan-

 

*ROOOONC*

 

E a barriga dela ronca.

Claro, ela é uma orc, a aparência quase humana dela me fez esquecer deste detalhe, caso não fosse a pele verde e as pequenas presas saindo para fora da boca dela.

 

Não demora muito para ela começar a salivar, e antes que eu perceba, ela lambe o meu dedo, o que me faz instintivamente puxar a mão para longe dela em nojo.

 

— Não me olha assim! Eu só estou com fome! E você… sua carne parece tão macia, com a pele tão branquinha, você deve ter sido bem cuidada durante todos esses anos… ehe… hehehe…

 

Acho que a minha integridade física estará em risco se eu não fizer algo.

 

Eu abro a minha bolsa e pego um filete de carne seca, e sem pensar duas vezes, enfio na boca dela, o que faz Runa morder a carne seca.

 

Ela imediatamente faz uma expressão de desgosto.

 

— Carne… seca… Ugh, não é tão bom quanto fresca… 

 

Ela tristemente olha pra mão queimada, e suspira… Logo após mastigar um pouco a carne seca, ela engole, junto com todo o ânimo dela.

 

— Vamos indo, se formos agora, é possível chegar na hora do almoço.

 

..

.

 

Após caminharmos por algumas horas, nós nos deparamos com uma divisão repentina na floresta, a floresta logo a nossa frente está completamente diferente da qual estamos no momento, há uma clara linha que divide ambas as partes da floresta.

 

A grama verde muda se torna amarela, os troncos das árvores estão mais claros e amarelados, enquanto cogumelos amarelos em formato de prato enormes brotam de seus troncos, quase não há folhas nesta nova floresta, e as folhas que existem, são grandes e amarelas, e brilham sob a luz do Sol.

Também é possível ver pequenas partículas de luz flutuantes, pairando no ar desta floresta amarela, e quanto mais nos aproximamos, um cheiro se intensifica, o cheiro de Dama-da-noite, que só é possível sentir a noite, mas está de manhã, e o cheiro desta flor permeia o local.

Eu não posso deixar de admirar esta floresta dourada.

 

— Esta floresta, é tão bonita, e diferente, é quase mágica. - Eu digo, estupefata pela visão diante de mim.

 

Eu e Runa caminhamos até a divisão entre as duas florestas, mas antes que pudéssemos atravessar, ela coloca um braço na minha frente, me fazendo parar de andar.

 

— Sim, esta floresta é tão bonita quanto é mágica, mas ela nos odeia. - Runa diz, repentinamente ficando séria.

 

Eu paro e a observo, ela está encarando a floresta com um olhar tenso, sua visão indo de um lugar para o outro, procurando por algo.

 

— Preste atenção Selvia, antes de atravessarmos esta parte da floresta, eu preciso te avisar. Não. Interaja. Com as. Fadas. Entendido?

 

— Fadas? Tem fadas por aqui?

 

— Sim, pequenas garotinhas travessas que gostam de perturbar os outros, mas definitivamente odeiam pessoas com auras malignas como nós duas, se você tentar ao menos conversar com uma, ela irá surtar, e chamar as outras fadas. E este lugar está inundado delas, mas elas geralmente se escondem, então cuidado.

 

Runa abaixa o braço dela, e segura o seu machado embainhado, pronta para puxá-lo a qualquer segundo.

 

— Vamos.

 

Nós damos um passo a frente, e eu imediatamente percebo que onde eu piso, a grama murcha e fica cinzenta, Runa percebe que eu não a estou seguindo, se vira e diz:

— Ah sim, a floresta inteira é um detector de magia, toda vegetação que você encostar irá murchar e morrer, isso só prova que você realmente tem uma aura maligna, provavelmente por causa do Necronomicon, você fez um pacto com ele, né?

 

— Sim. - Eu a respondo, enquanto ergo minha franja que esconde o buraco onde ficava um dos meus olhos.

 

— Heh, não sei se você tem sorte ou azar, muitos necromantes são loucos para obter o poder do Necronomicon, mas são poucos os que realmente querem pagar o preço.

 

Pagar o preço? Acredito que ela não está falando somente do olho, e falando nele, ele está bem quieto hoje.

Eu olho para o Necronomicon preso em minha cintura e o seguro com ambas as mãos, os olhos em sua capa estão fechados, como se ele estivesse dormindo.

 

E eu acho que é melhor deixar ele dormir, não quero sofrer um episódio de loucura neste lugar.


 

Conforme eu e Runa caminhamos, ela começa a falar mais sobre a floresta.

 

— Esta floresta foi criada pelos elfos e humanos que moram nesta região, como uma medida para impedir que a corrupção e a magia negra da academia se espalhe, e para que os necromantes que estão lá dentro, fiquem lá dentro, a floresta circula completamente a Academia Necromante, e foi feita para que aqueles que possuam uma aura maligna como a nossa possam entrar, mas não sair.

 

Então se ninguém pode sair, esta seria a primeira vez que Runa está visitando a academia? Mas ela claramente sabe bastante deste lugar, além de saber do horário de almoço, o que me faz pensar que ela havia saído.

 

— Então, se a floresta foi feita para ninguém poder sair… como você estava do lado de fora? - Eu pergunto.

 

— Há outras maneiras de sair, que para a nossa sorte, somente nós conhecemos, com o tempo você vai descobrir, por enquan-

 

E enquanto Runa estava distraída falando, eu sinto algo bater no meu ombro vindo da direita, uma pedra?

 

Eu rapidamente me viro para ver o que era, e vejo uma minúscula garotinha com roupas amarelas, feitas de grama, e asas quase transparentes que cintilam na luz do Sol, ela seria uma das fadas que Runa mencionou?

 

Ela está cobrindo a cabeça com as mãos, parece que ela não estava olhando para a frente e trombou em mim, mas assim que ela se recupera e me vê… O olhar dela é de horror, eu não sei o que ela está vendo em mim, mas é possível ver pequenas lágrimas saindo dos olhinhos dela

 

— Ah merda! - Diz Runa, rapidamente puxando os seus machados, mas não há tempo, a fada está prestes a gritar.

 

Mas eu a agarro, segurando-a com firmeza para não escapar, e cobrindo o rosto dela com o meu polegar para evitar que ela grite.

 

Eu me lembro que Runa havia dito que as fadas normalmente se escondem na floresta, mas que na verdade há muitas delas por aqui, não sei se alguma destas fadas que supostamente estão escondidas viram o que aconteceu, mas eu também não quero arriscar que vejam, eu coloco a mão no bolso de minha calça, enquanto ainda seguro a fadinha, eu posso sentir ela tentando se debater para se soltar, mas ela é pequena e fraca demais para conseguir.

 

E o ambiente ao nosso redor se torna ainda mais silencioso, Runa está em silêncio, olhando os nossos arredores enquanto segura seu machado, eu também observo as nossas redondezas… Até que um minuto se passa, e Runa suspira, em alívio.

 

— Eu… não acredito, nenhuma fada nos viu… - Ela diz, surpresa. — Vamos apertar o passo, o quanto antes sairmos daqui, melhor.

 

E caminhando às pressas, nós eventualmente, saímos da floresta das fadas, e durante este tempo, eu mantive a pequena fadinha no meu bolso, que em algum momento parou de se debater, provavelmente ficou cansada, mas eu ainda a mantive lá, por precaução.

 

Até que, ao atravessarmos uma folhagem espessa, saímos da floresta, e o que nos aguardava do outro lado, era um deserto seco e cinza, com árvores mortas, um solo cinza-azulado repleto de rachaduras, com uma neblina espessa que cercava nossos tornozelos e se espalhava pelo cemitério inteiro.

Eu digo cemitério, pois além do lugar parecer esvaído completamente de qualquer vida, também é possível ver tumbas e cruzes espalhadas pela área.

 

E no centro deste cemitério havia uma torre, uma torre muito alta e não muito larga, cujo topo era iluminado por janelas que refletiam por luzes azuis vindas de dentro da torre.

 

O que me faz lembrar que ainda estou com a fada no bolso, nós claramente não estamos mais na floresta, então eu tiro a mão do bolso para ver a fada.

 

Eu cuidadosamente abro minha mão, para ter certeza de que ela não iria voar e fugir, mas aparentemente ela está inconsciente, devido a falta de ar.

 

E a fada, realmente parecia uma pequena escultura de tão bela, com cabelos loiros e compridos, asas que brilhavam na luz do Sol, e uma pele tão branca, que eu só havia visto em mulheres nobres que faziam sangria ao ponto de adoecerem, mas que esta fada possuía de forma natural.

 

Eu a cutuco nas bochechas, mas não há resposta, talvez ela não esteja inconsciente, e sim morta.

 

— Oh, você ainda está com ela? - Runa diz, enquanto se aproxima de mim.

 

Ela pega a fadinha pelos cabelos e tira as folhas amarelas que cobriam o corpo dela.

 

— Runa, o q-

 

*CRUNCH*

*CRACK*

*CHOMP*

 

Runa coloca a fada em sua boca e começa a mastigar, com sangue saindo pelos seus lábios, e ossos sendo esmagados, e eu observando assustada, até que ela termina, e engole a fada.

 

— Ah! Acho que agora dá pra aguentar até o almoço! Vamos seguindo, já dá para ver a torre daqui! - Diz Runa, correndo e saltitando pelo cemitério.

 

Bem, acho que cheguei aonde eu queria, se este tipo de coisa for comum por aqui, ainda acho melhor do que ter que viver como um passarinho em uma jaula.

© 2020 Portfólio Pedro Prass - Criado por Me. Designer Adriano Monteiro via plataforma Wix.

  • Facebook Black Round
  • Instagram - Black Circle
  • Twitter Black Round
bottom of page