Necromancy Tales - Capítulo 5
Está ensolarado, e estou cansada.
Estou caminhando por uma floresta junto aos orcs, há pelo menos uns trinta deles, não sei se devo me sentir segura por supostamente estar do lado deles, ou preocupada por supostamente estar do lado deles… Mas de qualquer forma, o barulho próximo a mim me incomoda.
— Não se preocupe querida, tudo vai ficar bem.
— Papai, eu estou com medo.
— Pra onde será que estão nos levando?
— Oh minha deusa, então este é o caminho que você propôs para a minha alma?
Logo atrás de mim há uma fila de pessoas caminhando com os braços amarrados. Homens, mulheres, crianças, os orcs capturaram vários.
E não, eu não estou amarrada igual eles, na verdade minha situação é bem diferente, estou caminhando de mãos dadas com Runa, a meia-orc que me sequestrou.
Ou melhor, ela está agarrada em mim enquanto caminhamos, sendo uma meia-orc, ela é mais forte do que uma humana da nossa idade, e também não sabe controlar a própria força, o que faz o abraço dela um tanto desconfortável.
O Necronomicon está preso no outro lado da minha cintura, para evitar que ela encoste nele e aconteça outro acidente igual com o cavalo na noite passada.
— Ah! E então o meu machado ficou preso no escudo do guarda, mas ainda bem que eu tenho dois e usei o outro para desarmá-lo e…
E a meia-orc fala muito.
Ela havia me contado o seu nome, Runa, e também que ela é a única fêmea na vila, não é atoa que o Necronomicon se surpreendeu quando a viu, os orcs parecem tratá-la muito bem, igual o meu pai me tratava quando eu era pequena.
— Eu estou tão feliz de ter encontrado você! - ela diz, com um enorme sorriso no rosto. Ela deve estar contente de ter encontrado alguém da idade dela que ela possa conversar.
— Quando a anciã ver que fui eu quem encontrei a portadora do Necronomicon, ela com certeza vai me dar uma recompensa!
Ou talvez não.
Mas eu estou intrigada, ela parece conhecer o Necronomicon, inclusive, ela toma cuidado para não encostar nele, além de mencionar está tal de anciã, que também deve conhecer o Necronomicon.
Bem, nós estamos indo para uma academia de necromancia, não é estranho eu ser conhecido por lá.
O mais surpreendente disso tudo é uma meia-orc estar indo para lá, e eu definitivamente consigo sentir magia vindo dela, não é normal orcs utilizarem magia.
— Talvez eu peça por um garotinho elfo, hihihi! Elfos amadurecem mais lentamente, daí a carne permanece em um estado macio por mais tempo e se desenvolve com mais sabor por ficar mais tempo no estado infantil, heheheheeee - Runa diz, é possível ver um pequeno fio de baba saindo da boca dela
Ela age e pensa como um orc, pelo menos a criação dela foi normal.
E desta vez eu não consigo conter minha expressão de desgosto.
— Olhem ali! Aquele cabelo azul, não é a filha do lorde Islar? - Um dos prisioneiros indaga.
Droga, eu achei que se cobrisse a cabeça com o capuz, ninguém iria reparar em mim, eu devo ter virado na direção de um dos prisioneiros quando olhei para Runa.
— É verdade, é ela mesma! Eu me lembro de ter visto ela uns anos atrás durante o festival da colheita! - Uma senhora entre os prisioneiros diz. — Ela estava junto do lorde naquele dia, e ela era tão bonita, por que ela está junto dos orcs agora?
— O lorde deve estar por trás disso!
Não não, ele não está.
— O lorde deve estar dando suporte aos orcs, ele deve estar querendo recrutá-los para conquistar mais terras!
Isso não é bom para o meu pai.
Mas se eu pensar bem, será que faz alguma diferença?
Todas estas pessoas serão comidas pelos orcs ou usadas para outros propósitos, estes rumores nunca irão sair daqui.
Você está parcialmente certa, pois devem haver sobreviventes do ataque.
Mas não é como se eles tivessem me visto.
Selvia, você estava sentada no ombro de um orc desfilando pela cidade, acho que as únicas pessoas que não viram você foram as que já estavam mortas.
Merda.
Mas por que a preocupação? Você não abandonou a vida da nobreza? Você não possui mais vínculo algum com o seu pai.
Sim, mas… Eu o coloquei em perigo, o meu pai que me criou sozinho depois que a minha mãe morreu.
É o mesmo pai que iria te vender pro primeiro nobre melequento que pudesse torná-lo mais poderoso com um casamento político, se esqueceu?
O motivo dele estar fora aquela noite em que fizemos o contrato, era por que ele estava procurando um nobre para casar com você, você não faz idéia qual tipo de pessoa poderia voltar junto com ele, e quais tipos de coisas essa pessoa faria com você quando se casassem e fossem morar juntos.
…
Necronomicon está certo.
A última vez que o meu pai trouxe um pretendente para mim, era um rapaz loiro e alto de olhos azuis, um bom homem que se preocupava com os seus súditos, um homem que tinha uma irmã que gostava muito de mim, um rapaz jovem apenas quatro anos mais velho que eu, um rapaz que… Tentou me embriagar e se aproveitar de mim.
— Calados! - Um dos orcs grita, dando uma paulada na cabeça da senhora que havia falado antes.
Eu me lembro desta senhora, ela havia me dado um biscoito enquanto eu andava com meu pai pelo festival.
— Seus animais! O que vocês vão fazer com a gente!? - Os prisioneiros gritam.
Essas pessoas, não são muito diferentes do meu antigo pretendente, assim que a situação se vira contra elas, a verdadeira natureza deles se mostra.
"Do que você está falando!? Eu só ofereci um pouco do meu vinho! Sua maluca!" - Foram as últimas palavras dele enquanto era levado pelos guardas.
— Seus porcos imundos! A Deusa irá punir vocês por fazer isso com a gente!
Irritantes.
"O que vocês tem feito com essa criança para ela agir assim!? Como esperam que um nobre se case com alguém assim!?"
Silêncio.
Eu consigo vê-lo, eu consigo ver meus professores.
"Você vai aprender a como fazer uma reverência antes do lorde chegar! Denovo"
"Você só precisa ler estes três livros até o final da tarde, e sem almoço antes que você termine."
Estou cansada disso. Tão cansada.
Eu olho para o Necronomicon na minha cintura.
Eu olho para os meus professores sendo espancados pelos orcs e gritando, sinto uma forte dor de cabeça.
O meu olho não existente arde.
— Sua desgraçada! Você nunca se importou conosco! - Diz uma das crianças da minha vila, uma das que eu costumava trazer doces.
Eu não aguento mais isso, preciso fazer isso tudo parar.
Até que a minha atenção vira para uma das pessoas na multidão.
— Por que você tem que ser assim?! Eu só quero me livrar de você! Desde que a sua mãe morreu você só tem sido um peso morto na minha vida! Por que você não se casa e vai embora!!
Era o meu pai.
Eu não sei como e por que ele está ali entre os prisioneiros, mas eu o vejo ali, mas eu não quero tentar entender o que está acontecendo.
Eu me solto do abraço de Runa e caminho até meu pai.
— Eh? Selvia? - Diz Runa, um tanto surpresa.
Eu abro o Necronomicon no meio, o meu caminhar se apressa, e se torna uma corrida.
O mundo ao meu redor desaparece, eu só consigo ver o chão da floresta e o meu pai urrando.
Até que, com toda a minha força, eu soco o Necronomicon aberto no rosto do meu pai, um enorme sentimento de satisfação percorre pelo meu corpo, como se todos os meus sentimentos que estavam presos em mim até então se liberassem.
— CALEM. A. BOCA! - Eu grito, não para o meu pai, ou os prisioneiros, mas para o céu.
…
..
.
Os meus sentidos voltam, eu sinto a brisa do vento novamente e o calor do sol.
Mas não ouço nada, pois o silêncio volta a floresta, os prisioneiros, orcs e Runa estão me observando em silêncio.
Eu noto que ainda estou com o Necronomicon enfiado no rosto do meu… Pai?
— Gah-glhr grhl mlr…
E quando eu reparo, a pessoa na qual eu enfiei o Necronomicon no rosto não é o meu pai, e sim uma jovem moça de cabelos ruivos, ela parece estar engasgando na própria saliva.
Eu puxo o Necronomicon para guardá-lo na minha cintura, e quando o faço, a pele do rosto da moça é arrancada junto com o Necronomicon, e o rosto dela se torna um amontoado grotesco de sangue.
Não houve resistência nenhuma e eu não fiz força alguma, mas a pele saiu por completa, um resultado um tanto inesperado.
E o mais estranho é a moça estar parada em silêncio, até que ela cai de joelhos, e em seguida, no chão.
Eu olho para o Necronomicon.
— Isso foi… Você? Ela… Morreu?
Sim, acontece quando estou com fome.
— E aquelas… Alucinações?
É um efeito colateral do nosso pacto, eu sinto que você irá começar a vê-las com cada vez mais frequência conforme interagirmos.
Isso é um tanto incômodo. Eu acabei de matar uma pessoa, mesmo sendo manipulada, não consigo sentir nenhum remorso ou culpa, talvez por que ela não significava nada pra mim, ou por que eu sabia que ela já iria morrer nas mãos dos orcs.
Mas o mais importante agora…
Eu observo ao meu redor, os prisioneiros me observam com medo em seus olhos, e os orcs estão coçando a cabeça.
— Ahm, mim ia levar ela pra casa. - Um deles diz. - Mas acho que terei que pegar outra.
— Bem, não vamos desperdiçar. - Outro orc diz, enquanto erguia o corpo da moça - Eu fico com uma coxa.
— Ei vocês, andando! - Outro orc diz, puxando os prisioneiros pela corda, forçando-os a andar.
Logo, todos voltam a caminhar como antes, e Runa vem até mim novamente.
— Ooh! Então é isso o que acontece quando se encosta nele? Ainda bem que eu tive cuidado! Hahaha!
Eu não sei o que responder, e apenas fico em silêncio.
…
..
.
Não demora muito até chegarmos em uma bifurcação na trilha da floresta, Runa havia me dito que ela só estava acompanhando a tribo dela em uma última caçada antes de ter que voltar do recesso da academia, e parece que chegamos no ponto em que ela preciso dizer adeus aos orcs e voltar para a academia, comigo a acompanhando.
Os orcs levam os prisioneiros com eles e só restam eu, Runa e o Necronomicon na estrada.
Eu não sei quanto tempo irá levar até chegarmos lá, mas pelo menos eu sei que Runa não vai me lanchar, pois ela ficou com um dos braços da moça que eu matei antes…
A noite eventualmente cai.
Runa despreocupadamente caí no sono enquanto deitada diretamente na grama, ela alinhou seus machados para servirem de travesseiro para ela.
Por enquanto eu estou sem sono, sentada no chão próxima a uma fogueira que fizemos, e agora eu acho um bom momento para perguntar…
Eu fecho minhas pernas e pego o Necronomicon da minha cintura para colocá-lo em meu colo.
Eu encaro o rosto moldado em sua capa e pergunto:
— Você tinha citado efeitos colaterais antes, e hoje também, o que está acontecendo? Eu tive umas visões muito estranhas hoje a tarde.
A boca em sua capa de couro começa a se mover conforme o livro fala.
— Bem… - Ele diz, tentando desviar seus olhos não existentes do meu olhar. - Uma hora eu teria que lhe falar.
Eu o encaro mais fortemente com apenas um dos meus olhos existentes.
— Certo… Por onde eu começo…